Alex Alves*
Na minha opinião, se há um ramo
de atividade que jamais deveria ser tratado simplesmente como comercial, esse é
o setor de saúde. Por trabalhar com o que é mais valioso ao ser humano – sua
vida e de seus entes queridos, sob todos os aspectos: manutenção, prolongamento,
qualidade, melhoria, correção, reparo. Qualquer procedimento médico afeta a
vida, e entendo que o bem fundamental de qualquer nação é a integridade, também
lato sensu, dos indivíduos que a
compõem.
O sistema que possuímos hoje, em
que pesem os elogios que se possa fazer às ilhas de excelência e ao caráter
humanitário do sistema público e a algumas instituições privadas de excelência,
não atende adequadamente a população. Na rede pública ou privada, com ou sem
plano de saúde, o cidadão espera mais do que deveria, tem dificuldades de
agendar consultas e procedimentos, sofre com a falta de humanização do
atendimento e não enxerga a qualidade que gostaria de ver.
Vivemos um círculo vicioso: a
rede pública, pelas circunstâncias de orçamento limitado, das tradicionais
dificuldades de gestão e sob a plausível justificativa da universalidade, não
oferece previsão ao cidadão de quando irá melhorar. A rede privada, por sua
vez, tem sofrido aumento da demanda, sem um ente regulador nacional que
estabeleça padrões de qualidade do atendimento “comercial” e fiscalize o seu
cumprimento. A percepção de qualidade, portanto, vai caindo, também sem
previsão de melhora que não seja por meio do aumento da exclusão – serviços
mais caros e mais restritos.
Nesse sentido, as listas de
profissionais dos planos de saúde estão cada vez menores em termos de
prestadores, que vivem entupidos de pacientes aguardando um espaço na agenda.
Por outro lado, os profissionais mais renomados, que prestam bom atendimento em
seus consultórios, costumam fugir dos planos, que pagam um valor baixo por
consulta, atendendo somente a quem custeia integralmente o atendimento. De
novo, a exclusão se faz presente, tornando a medicina de alto padrão acessível
quase que somente a um grupo que tenha condições de, mais do que pagar um bom
plano de saúde, tenha fôlego financeiro para custear o acesso a profissionais
de ponta em caso de necessidade.
Até que vem a criatividade
empreendedora e, no ano de 2016, a partir de Brasília, essa via crucis de quem precisava passar por
3 a 4 horas de espera numa fila de hospital ou 1 a 2 meses de espera por uma
consulta simples, para ter receitado um medicamento ou ser encaminhado para a
realização de um exame sofreu o primeiro golpe efetivo. Não, não foi uma
política pública inovadora – bem que poderia ter sido! – ou uma hierarquização
de prioridades vinda do setor público. Muito menos veio de um grande grupo
empresarial. A solução, ainda que não atenda em larga escala as crescentes
necessidades da população brasileira, acabou vindo de um player pequeno, com o lançamento do aplicativo Dokter.
Encarado por alguns como o Uber
da medicina, a correlação é fácil de obter. Você instala o aplicativo e, dando
as coordenadas do local do atendimento, aguarda o retorno de um médico
cadastrado que atenda na região. Em um período curto de tempo, ele estará na
sua casa, examinando à moda antiga, mediante justa retribuição. Claro que o
pagamento não está ao alcance de toda a população brasileira, mas somente o
fato de dar sinais sobre a possibilidade de chacoalhar os sistemas público e
privado vigentes na área de saúde, aproveitando a lacuna deixada pela falta de
capacidade e de qualidade de atendimento, já é digno de registro e elogios.
Ainda em comparação com o Uber,
há de se atentar para a discrepância de “rivais”: se no aplicativo de
transporte está se lidando com as corporações de taxistas, em certa medida
influentes politicamente e numerosas em integrantes, no caso do Dokter a
questão tem potencial de afetar interesses mais poderosos: hospitais (hoje já
administrados por grupos de investidores), planos de saúde e o próprio governo,
que talvez queira, em algum momento, mediante pressão política dos dois
primeiros, regular o serviço.
De forma interessante, o
aplicativo inovou no setor, conquistando um espaço até então vazio. Afinal, os
hospitais e clínicas privados não estão conseguindo atender adequadamente a
demanda. Acredita-se que os médicos que prestam serviço pelo aplicativo recebam
remuneração mais atrativa nele do que dando plantões em hospitais tradicionais.
Preservando remuneração que se supõe adequada à operadora do aplicativo e ao
profissional de saúde, o aplicativo atendeu às necessidades dos cidadãos sem
ferir nenhum interesse imediato do establishment,
apenas atuando onde ele não conseguia (ou, talvez, não queria) chegar.
Trata-se, assim, do que considero
o maior empoderamento do cidadão-consumidor que pude presenciar desde que
comecei a estudar temas de gestão pública e de defesa do consumidor, há cerca
de 9 anos.
O aspecto de participação do
consumidor fica reforçado pela importância elevada do atendimento, que tem sido
digno de elogios e avaliações positivas dos pacientes. Sim, o paciente avalia o
atendimento recebido e, tomando por base aquele que eu mesmo pude experimentar,
há nas diretrizes da gestão do aplicativo e dos profissionais que a ele aderem
o enfoque na humanização do atendimento, algo que faz lembrar o Programa Saúde
da Família, uma das mais respeitadas políticas públicas de saúde que
vivenciamos na última década.
Não se garante o mesmo médico dos
atendimentos anteriores, mas se o cadastro do paciente for unificado pela
central do aplicativo, já se tratará de um prontuário mais integrado do que o
hoje disponibilizado no sistema privado, onde cada hospital e prestador mantém
o seu cadastro individual de pacientes.
Uma ideia boa como a do Dokter,
infelizmente, tende a sofrer retaliações de determinados grupos de interesse em
médio prazo. Por isso, seria interessante efetuar um trabalho prévio de
relações institucionais, com a criação, por exemplo, de uma frente parlamentar,
de um trabalho de obtenção de apoio da sociedade e de mídia institucional. Além
disso, seria recomendável maior disponibilização de informações sobre o
histórico do aplicativo e sobre suas inovações no seu sítio eletrônico, bem
como informações sobre sua estrutura física e de atendimento – questões que serão
necessárias com a sua maior difusão.
Por fim, cabe mencionar que não
se trata de uma panaceia apta a solucionar os inúmeros problemas da saúde no
Brasil, mas que é uma louvável iniciativa fruto da inventividade empreendedora,
mostrando que é possível obter lucro prestando um serviço de qualidade.
* Servidor e estudioso da Administração Pública, Alex Alves
é coordenador do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE) e autor do livro
A recondução do servidor público: doutrina e jurisprudência à luz da Lei
8.112/1990 e da Constituição Federal.
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